terça-feira, 23 de março de 2010

Dialetos de Degustação

Por Alexandre Marcussi, em materia no Site Brejas:
http://www.brejas.com.br/blog/23-03-2010/dialetos-de-degustacao-5224/

“Dimetil-o-quê?”

Convenhamos que traduzir em palavras uma experiência do paladar como a de beber uma boa cerveja não é das tarefas mais gratas. As palavras são traiçoeiras. Podemos ser facilmente capazes de reconhecer certas sensações provocadas em nosso paladar ao experimentá-las repetidamente, mas nem sempre somos igualmente felizes ao tentardescrevê-las para as outras pessoas. Muitas vezes, duas descrições completamente diferentes para uma mesma cerveja se devem muito mais a esse fenômeno de “Torre de Babel” do que a diferenças reais na percepção das pessoas envolvidas: elas podem parecer discordar completamente, mas na verdade só escolheram palavras diferentes para falar das mesmas coisas.

Isso se deve, em grande parte, às peculiaridades da nossa memória olfativa. Tendemos a associar aromas e sensações a experiências de nossa vida nas quais pudemos perceber sensações semelhantes. A associação entre memória olfativa e afetiva é muito forte, o que faz com que certas sensações tenham forte ressonância em nossa memória. É só lembrar que um dos maiores romances do século XX, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, começa quando o narrador põe na boca uma madeleine, espécie de biscoito amanteigado tipicamente francês, o que evoca uma cascata de memórias da infância. Degustar cervejas pode se tornar, igualmente, uma experiência interessantemente evocativa: outro dia senti em uma cerveja um aroma que me remeteu diretamente a um brinquedo que eu tinha quando era criança, me trazendo memórias eu julgava perdidas. Contudo, esse é o tipo de associação muito difícil de comunicar: será que mais alguém teve o mesmo brinquedo na infância e o associou a esse mesmo aroma que eu senti?

As discrepâncias na linguagem e no vocabulário sensorial usado para descrever cervejas podem desencorajar alguns iniciantes e iniciados ao mundo das degustações. Quantas vezes, ao lermos uma descrição que destoou das nossas impressões, não achamos que “não sabemos” beber cerveja e nem identificar “corretamente” suas características? Outras pessoas, diante disso, já começam a achar que então esse papo de degustação é tudo invenção, pedantismo, esnobismo. Calma lá. Talvez tudo isso possa ser mais facilmente compreendido se tentarmos entender os diferentes “dialetos” ou jargões usados pelos degustadores, tanto profissionais quanto amadores. Existem algumas formas mais técnicas e objetivas de descrever uma cerveja, e outras formas mais intuitivas, “impressionistas”, cada uma das quais tem as suas vantagens e desvantagens. A tradução de uns para outros pode, como qualquer tradução, ser uma ciência tanto inexata, mas ainda assim é algo possível e louvável.

Não é difícil entender a utilidade de termos técnicos para orientar degustações e descrições de estilos. Quando se estabelecem nomes padronizados para certas características objetivas, como determinados compostos químicos que exalam certos aromas específicos, boa parte da incompatibilidade nas descrições pode ser minimizada. Tomemos o exemplo do DMS, sigla para “dimetil-sulfeto”, um composto químico produzido a partir do malte e que pode ser reconhecido em diversas cervejas, especialmente lagers claras. O aroma dessa substância pode ser associado a milho verde, a legumes cozidos, a aspargos em conserva, a repolho cozido e a frutos do mar. Eu adicionaria ainda uma associação tipicamente brasileira, pelo menos quando essa característica está bem evidente: a pamonha. Para piorar, dependendo do tipo de cerveja, o DMS pode assumir outras características: em cervejas escuras, pode ser facilmente associado a molho de tomate. Além disso, é comum que ocorra associado a outro composto que pode lembrar aromas de cebola cozida e alho.

Complicou, né?

Diante disso, falar em DMS (em vez de todas essas associações disparatadas) pode reduzir as ambiguidades e ajudar a criar um vocabulário mais “neutro” para que dois degustadores possam se entender. Isso é especialmente importante no caso de degustações profissionais dentro de cervejarias, onde é preciso reconhecer a ocorrência de determinadas substâncias para identificar problemas na produção (o DMS, por exemplo, pode indicar que o mosto precisa ser mais bem fervido); ou então no caso de competições, em que os jurados precisam identificar certas características específicas que podem ser aceitáveis ou não em determinados estilos. O DMS é aceito em pequenas quantidades numa Munich helles, mas já é problemático numa bitter ale, por exemplo. Há diversos graus de tecnicismo possíveis no linguajar de degustação, desde coisas mais genéricas como diferenciar “malte” de “lúpulo” (sim, isso já é um critério técnico!) até aspectos tão específicos quanto o bendito DMS.

Aperfeiçoando a linguagem

Para quem estiver interessado nesses descritores técnicos (eles são super úteis para homebrewers!), um bom número deles pode ser encontrado, por exemplo, no recente livroTasting Beer, de Randy Mosher. Outra possibilidade, que dispensa encomendas de livros importados, pode ser dar uma olhada nas “fichas de sabor” (flavor files) produzidas pelaFlavorActiv, companhia inglesa especializada em gestão sensorial de cervejas, e disponibilizadas gratuitamente no site da empresa:http://www.flavoractiv.com/bfs_orders/?lang=en&page=order. As fichas de sabor acompanham e descrevem as especificações técnicas das cápsulas de aromas solúveis produzidas pela companhia, mas só a leitura da ficha e dos termos sensoriais associados a cada substância já pode ajudar a reconhecer algumas dessas características.

Então poderia parecer que a linguagem técnica seria uma espécie de panaceia universal para uma “boa” avaliação. Mas não é bem assim. E isso porque uma avaliação absolutamente técnica é extremamente árida e nem um pouco evocativa. “Levedura sensorialmente dominante, com altas concentrações de butirato de etila e 4-vinil-guaiacol.” E aí, soa apetitoso? Quem sabe se nós traduzirmos para “perfume intenso, em que se misturam aromas de frutas tropicais e amarelas, como abacaxi em calda, e de especiarias, remetendo a cravo”? Ah, agora, sim, deu vontade de beber uma Leffe Blonde! E, além de a descrição técnica ser muito chata, ela ainda por cima é completamente incompreensível para 99,9% das pessoas. Duvido que você vá “beerevangelizar” muita gente com 4-vinil-guaiacol. Por isso, os sommeliers optam normalmente por empregar uma linguagem mais intuitiva, apelando a associações (nem sempre perfeitas) com a memória olfativa mais ou menos compartilhada pelas pessoas, pelo menos dentro de uma determinada cultura que consome certos tipos de alimentos. Tudo para despertar e aguçar o paladar e a afetividade para as sensações que as boas cervejas nos reservam. O célebre Michael Jackson (o sommelier, não o popstar) é um dos mestres em descrições selvagemente impressionistas, muito evocativas e ao mesmo tempo embasadas em um profundo conhecimento técnico do assunto.

Afinal de contas, essa cerveja tem banana ou compota de pera?

OK, pode ser que certas substâncias sempre gerem alguma medida de confusão numa linguagem mais intuitiva. “Afinal de contas, essa cerveja tem banana ou compota de pera?” Bem, a rigor, talvez ela só tenha acetato de isoamila mesmo. Mas isso quer dizer muito pouca coisa em termos do quanto é gostoso beber uma boa Weissbier! Cada degustador (aqui no Brejas, inclusive!) tem seu estilo de escrita e sua preferência por este ou aquele “dialeto”, esta ou aquela associação sensorial. Cada linguagem tem suas virtudes e seus problemas, e cada público vai responder diferentemente a esta ou aquela forma de falar ou escrever. Por isso um ambiente em que haja uma pluralidade de estilos de avaliação é tão rico e instigante. Talvez o mais interessante, como sempre, seja a possibilidade de traduzir e de criar a sua própria “receita”, o seu estilo, o seu meio-termo entre os dialetos da “tribo”. O que quer que ajude a compartilhar o prazer de beber uma bela cerveja. Um brinde, com gosto de banana ou com acetato de isoamila!

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